VOLTAR ÀS RAIZES
- 22 de jul.
- 6 min de leitura
Por Lucia McAloon

A intensidade das revelações na Bahia — sobretudo a intervenção do plano espiritual — não marcou um fim. Pelo contrário, foi o verdadeiro início. A partir dali, comecei a perceber que não se tratava apenas de “entender” meu sofrimento, mas de atravessá-lo com o corpo, com a alma, e com os pés fincados na terra.
Aceitei o convite do terapeuta para seguir com ele a um retiro em sua fazenda. Não era apenas um lugar físico — era um espaço sagrado, onde o tempo parecia se curvar, como se a realidade comum abrisse passagem para algo mais profundo. Ali, percebi que minha jornada não era uma fuga da dor, mas um retorno ao essencial. Um retorno àquilo que fui antes de tudo se perder.
O que é simples cura
O retiro era, em essência, um chamado para "voltar às raízes". Vivíamos de forma rústica, quase primitiva, mas nada ali era ausência — era despojamento. Em vez da ausência de conforto, era a presença do essencial. Colocávamos os pés na terra, sentíamos o chão vivo sob nós. Não havia espelhos, nem relógios, nem exigências sociais. Era só o agora, o corpo, o céu.
As rotinas pareciam banais à primeira vista: plantar, colher, cozinhar, pintar. Mas havia ali um poder terapêutico profundo, silencioso. Comecei a cozinhar comidas naturais, e esse ato — que por anos fora automático ou negligenciado — se transformou em um ritual de cuidado. Nutrir meu corpo era um gesto sagrado, um reencontro com a gratidão. Cada ingrediente fresco era uma prece em estado bruto. A comida me curava.
Pintar foi outra descoberta. Eu, que mal me lembrava da última vez que havia tocado um pincel, me vi entregando à tela emoções que não cabiam em palavras. As cores vinham de dentro. Algumas carregavam medo, outras uma esperança trêmula. E, aos poucos, a tinta me revelava a mim mesma. Como se houvesse uma sabedoria que apenas as mãos sabiam.
O medo dissolvido na confiança
Com os animais, vivi o que só posso chamar de reconciliação. Onde antes havia pavor, alergias, nojo — agora havia curiosidade. Brinquei com cães e gatos como uma criança redescobrindo o mundo. O trauma da infância, aquele episódio com meus irmãos e o cachorro, parecia finalmente ter encontrado um lugar seguro para se dissolver. O corpo não mentia: o que antes disparava medo, agora despertava ternura.
Interagir com esses seres puros me ensinou algo essencial — confiar. Primeiro neles, depois em mim, e por fim no mundo. O medo, descobri, não é algo que se “entende” — é algo que se atravessa com novas experiências. Era como se, por fim, eu tivesse atravessado.
Entre o céu e a terra
Mas o que mais me marcou — o que, até hoje, me parece pertencer a um outro tempo — foram os momentos de comunhão com o invisível. Em uma tarde calma, sentamos sobre um tronco caído. O terapeuta me disse, com a tranquilidade de quem fala do tempo, que aquelas terras eram habitadas por consciências de outros planos. Algumas, segundo ele, vinham de outros planetas, estrelas distantes, como as Plêiades.
Falava de seres que estudavam as plantas e guardavam sabedorias perdidas. Utilizando ferramentas como radiestesia, pêndulo e ThetaHealing, ele fazia perguntas. E embora parte de mim observasse com ceticismo, outra parte sentia — algo ali era real. Não talvez no sentido científico da palavra, mas no sentido íntimo. O corpo acreditava, mesmo quando a mente vacilava.
Contou que havia uma nave ali, invisível, mas ancorada sobre aquelas terras. Uma comunidade de mais de 80 seres pleiadianos, femininos e masculinos, que pesquisavam a botânica sagrada da Terra. Ao redor deles, entidades indígenas e caboclos protegiam o território. E disse ainda: nem todos podiam visitar aquele lugar. Era preciso ser “autorizado”. Os que vinham sem esse chamado costumavam ser barrados por pequenos acidentes: pneus furados, carros que não ligavam, chuvas repentinas. Eu fui aceita. E me senti, de algum modo, escolhida.
Pode parecer fora da realidade — e talvez seja mesmo. Mas o que é a realidade, senão aquilo que molda quem somos?
Terra como templo
Ali, naquele pedaço de chão cercado de árvores e silêncio, comecei a entender o que era liberdade. Não era ausência de dor. Era ausência de amarras. Os padrões que me haviam prendido por tantos anos — o abuso, o medo, a busca pelo amor onde ele nunca existiu — começavam a ruir. E o que emergia era algo anterior a tudo isso: a essência. A parte de mim que não foi condicionada. Que só queria ser livre e viva.
Caminhar descalça, colher uma folha, cozinhar em silêncio, pintar sem esperar resultado — tudo isso se tornou medicina. A vida simples não era retrocesso. Era sabedoria. E a espiritualidade que encontrei ali não era feita de dogmas ou promessas. Era feita de presença.
Era como se o espírito finalmente tivesse espaço para falar. E ele falava pela terra.
Fechamento: a primeira colheita
Esse retiro não foi um evento. Foi um rito. Uma iniciação em uma nova forma de estar no mundo. Entendi que a cura não é um ponto de chegada, mas um modo de caminhar. Que às vezes, para avançar, é preciso retornar. Voltar à infância. Voltar à terra. Voltar a si.
A mulher que saiu daquela fazenda não era a mesma que chegou. E não era porque tudo havia mudado. Era porque, pela primeira vez, eu havia parado de fugir.
A cura não veio das estrelas, nem das palavras — veio do silêncio entre elas. Veio da terra molhada, do fogo aceso na panela, do olhar curioso de um cão, do verde que insiste em crescer. Veio da coragem de permanecer. E de, enfim, ouvir.
A Difícil Arte de Voltar
Durante o voo de volta, olhava pela janela como quem tentava encontrar, nas nuvens, alguma resposta para o que acabara de viver. Eu ainda estava em êxtase. Era como se meu corpo estivesse retornando, mas minha alma permanecesse em suspenso, orbitando entre dimensões. O que foi aquilo? Aquela magia tão concreta, tão sentida… como viver no "mundo real" depois de ter vivido o invisível com tamanha nitidez?
Ao desembarcar, fui recebida com flores e um sorriso gentil do meu marido. O gesto era doce, sincero, mas algo em mim havia mudado. Eu não era mais a mesma mulher que partira semanas antes em busca de cura. Eu havia tocado a terra com os pés descalços e, com isso, também havia tocado meu espírito com mãos nuas, sem defesas.
Mesmo exausta da viagem, senti uma urgência em manter o fio da simplicidade que havia me curado. Preparei uma refeição leve — arroz integral, verduras frescas, azeite e gratidão. Meu corpo não queria o excesso, não queria industrializados, não queria pressa. Meu corpo queria ritual, presença e terra.
Na manhã seguinte, acordei com um desejo intenso de escrever. Era como se, ao deixar o retiro, eu tivesse assumido um compromisso silencioso: o de não esquecer. Escrever era minha forma de selar a verdade do que vivi. Não podia negar: tudo fora real. A libertação do medo dos animais, por exemplo, não era apenas simbólica. Era física. Concreta. Depois de anos de tratamento para alergias, aquela reação do corpo simplesmente desaparecera. Não havia mais coceiras, espirros, repulsa. Havia toque, convivência, afeto.
A lembrança dolorosa da infância — o medo, o riso cruel dos meus irmãos, o desprezo disfarçado de brincadeira — também havia mudado. Ainda me lembro do choro intenso durante a sessão, mas hoje ele soa como um rio que correu o que precisava correr. Hoje, há entendimento. Eles eram crianças também. E ele, meu pai... fez o que sabia fazer. Pela primeira vez, consegui pensar nele sem a dureza da vítima. Comecei a me lembrar também das coisas boas. Dos gestos pequenos que ficaram encobertos pela dor maior. Isso não é apagar a ferida — é integrá-la.
E quanto ao meu marido… o retorno a essa convivência cotidiana também ganhou outra perspectiva. Ele continua sendo ele — com suas limitações, suas dificuldades de demonstrar afeto, seus silêncios longos demais. Mas eu, agora, posso vê-lo com mais clareza. Posso perceber onde ele termina e onde eu começo. O autoconhecimento não o transformou, mas transformou a forma como eu me relaciono com ele. E isso, por si só, já é uma forma de milagre. Trouxe-me mais amor, mais gratidão — não cega, mas consciente. A aceitação de que nem todos mudam ao nosso ritmo… e que, às vezes, mudar a forma de olhar é o suficiente para respirar em paz.
Voltar, percebi, não é continuar de onde parei. Voltar é recomeçar com outros olhos. A difícil arte de voltar é essa: não se perder de si ao reencontrar os velhos rostos, os velhos hábitos, os velhos afetos.
É caminhar no mesmo mundo, mas com um novo centro de gravidade.
Lucia McAloon é escritora.




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